A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO FORMATIVA DAS CEB’S
Em memória de Pedro Aguiar que plantou muitas sementes de vidas.
Agradeço e muito a oportunidade, o convite para participar nesse momento. Esse agradecimento é amplo, pois é também um reconhecimento público da importância das CEB’s para a minha formação pessoal, para a minha trajetória profissional e o lugar que atualmente estou. Como professor na UFPE, com muita serenidade, tranquilidade reconheço que esse lugar que ocupo foi possível a partir da participação, as experiências, as vivências e os aprendizados na Década de 1980 nas e com as comunidades em Nova Descoberta, periferia do grande bairro de Casa Amarela, no Recife/PE. Portanto, as minhas reflexões serão a partir dessas experiências que foram amadurecidas ao longo dos anos vividos.
Esse momento também possibilita refletir em muito sobre os significados da vida e suas fragilidades. Numa situação de pandemia do coronavirus, com muitas pessoas infectadas e infelizmente falecidas, somos impedidos/as de estarmos juntos/as e reinventar formas de nos encontrar por meio digital através das “lives”. É momento impar para pensarmos sobre vaidades, aparências e ilusões diante da finitude, a fragilidade e limitações da vida: um “bixo” invisível, que felizmente morre com água e sabão (e se não fosse assim?), nos apavora, causa muitos temores, provoca arrepios ao imaginarmos hospitalizados. Afinal, quem pensamos que somos?! Para que tanta arrogância, orgulho, exibicionismos, se a vida em muito é semelhante a uma bolha de sabão?!
O meu olhar, as minhas reflexões serão, portanto, a partir de uma leitura no presente sobre o passado vivenciado. A partir do momento vivido e da maturidade adquirida com a vida, o que possibilita avaliar, analisar e pensar atualmente de longe sobre as experiências vivenciadas. Possibilitando ainda refletir sobre as minhas vivências nas comunidades, fazer perguntas e apontar desafios as serem enfrentados no atual cenário sociopolítico conservador. Nessas reflexões apresento também muitas ideias não ditas pelo pouco tempo disponível para a conversa da “live”. Peço que as receba como uma contribuição para alimentar a esperança no agir de mudanças na construção de um novo tempo: “vai passar!”
As comunidades e sua dimensão formativa
Quem era cada um/a de nós? Quem somos atualmente? E como chegamos aonde estamos? Essas perguntas nos rementem a trajetória de formação de cada um/a e a importância das comunidades em nossas vidas. Vamos sendo formados/as, muitas vezes sem perceber, em aprendizados nas reuniões, nos encontros, nos momentos de estudos, nas viagens, nas muitas conversas e mesmo conflitos com companheiros/as e também nas festas. São todas essas experiências e vivência que vão nos formando no amadurecimento da vida pessoal e também profissional, sobre o que nem sempre pensamos.
As experiências que vivenciei iniciaram na paróquia com o grupo de jovens vinculado a Pastoral da Juventude do Meio Popular/PJMP, onde nos grandes encontro de formação além de discutirmos questões como sexualidade, as atitudes e as relações pessoais, as formas de participação na comunidade, o compromisso no agir social para mudanças, eram realizados estudos de textos, publicações e livros indicados para formação de nossa visão crítica sobre a situação social e política do país e do mundo. Celebrávamos a vida com leituras de textos bíblicos, “cantos da caminhada”, por meio de teatro e muitas músicas de qualidade da MPB. E dessa forma fé e vida, fé na vida eram vinculadas na caminhada para construção de uma nova humanidade.
Foi nesse ambiente os aprendizados críticos sobre a organização e nosso lugar no sistema capitalista que alimenta-se da morte diária de vidas humana. Descobrir, como afirmou São Crisóstomo, “que todo rico é ladrão ou filho de ladrão!”. Ou seja a riqueza é produto do roubo social, da exploração e morte de milhares de empobrecidos. Existindo diferenças entre pobres e empobrecidos. A pobreza é uma forma de vida na simplicidade e até por escolha, mas que não significa infelicidade. Mas, o ser humano deve viver no bem-estar social com uma vida digna com casa, trabalho, saúde, educação e todos os direitos para uma vida em plenitude.
Os empobrecidos não tem escolhas. O empobrecimento é uma condição imposta a milhões de pessoas que sem opções nascem, vivem e morrem exploradas pelos sistema capitalista. E assim crianças, adolescentes, jovens, pessoas adultas e idosas não tem perspectivas de mudanças, são apenas mão de obra barata vendendo a força de trabalho pelo mínimo de dinheiro. Ou além de muitos/as que sequer conseguem um trabalho para receber o mínimo, estão à margem, são os mais miseráveis desprezados no submundo das drogas, das violências, das injustiças sociais. São “invisíveis” nos censos oficiais, sem teto e sem nomes. E só temos notícias deles quando é tratado sobre crimes considerados “bárbaros” nas páginas dos jornais e noticiários televisivos.
Os aprendizados contribuíram para o amadurecimento pessoal, percebendo ser e estar no mundo, um novo olhar para as relações humanas, o agir e o atuar na História construída cotidianamente, a força da organização dos/as empobrecidos/as. Além de possibilitar compreender a importância das discussões de decisões coletivas o poder como um serviço para o bem comum, o exercício da partilha, da solidariedade, a crítica ao patriarcalismo, machismo e racismo, uma visão crítica da sociedade e da política. A defesa da justiça social, o compromisso e a responsabilidade com mudanças, a defesa da liberdade, o gosto pelas leituras, pelos estudos e a boa música.
A participação na comunidade religiosa, nos estudos no Instituto de Teologia do Recife/ITER, impulsionou a minha participação no conselho de moradores onde fiz parte de uma das diretorias eleitas, discutindo a organização e mobilizações na busca de soluções para os problemas enfrentados pela comunidade. E mais tarde de forma mais ampla nos movimentos sociais populares em Casa Amarela e no Grande Recife, que reivindicavam das autoridades política públicas de moradia nos morros e córregos com segurança, saneamento, transporte, educação e saúde de qualidade. Além de segurança e lazer para a juventude e toda a população.
Esses aprendizados foram fundamentais ainda quando iniciei minha participação no Partido dos trabalhadores, na atuação em organizações não governamentais (Ongs) na atuação com questões sociais e no Conselhos Indigenista Missionário (CIMI-NE) onde estive por quase dez anos. E também para as minhas escolhas e trajetória de formação profissional nos anos seguintes, quando fui estudar na universidade. Quando decidi atuar profissionalmente como professor, na continuidade dos estudos como docente universitário, nas relações com estudantes, com colegas e as pessoas em geral e nas pesquisas com os indígenas, tema sobre o qual venho dedicando meus estudos.
Perguntas, questões e desafios
Como citado acima, a partir de olhar na atualidade e observando as experiências vivenciadas surgiram perguntas, questões e desafios para reflexões e buscas de respostas pelas comunidades. São diversas situações que são omitidas, negadas ou ignoradas, mas que precisam ser pensadas e discutidas com muita tranquilidade, entre os limites, possibilidades e desafios em buscar compreender, nas tentativas de encontrar soluções e experimentando novos caminhos. Uma das questões importantes é o exercício do poder nas comunidades. Existem responsáveis por coordenar as atividades, a ocuparem cargos, organizar e lideram grupos que são envaidecidas, agem de forma autoritária, concentram as decisões, manipulam situações, espaços e pessoas. E às vezes fazem dessa forma com as maiores das “boas intenções”, preocupadas com os resultados e não com processo que quando for lento, demorado e com erros, mas também serve como aprendizado.
O Padre José Comblin[1] (muitas pessoas pronunciam “Comblen”) foi um estudioso, escreveu muitos livros sobre Teologia e a caminhada das comunidades. Num dos textos citou a “teologia da chave”. Tratando sobre como em algumas comunidades existem pessoas com o poder de “guardar a chave”, decidindo os momentos, dias e horários das reuniões. Esse foi um exemplo pessoas centralizadoras, dominadoras e controladora. O que fazer e como enfrentar esse tipo de comportamento? Como discutir que a liderança é saudável quando exercida com o carisma reconhecidos por todos/as?
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Foto: google imagens |
Nas comunidades existem pessoas jovens ou idosas talentosas e com muitas habilidades para atividades como desenhar, cantar, escrever, liderar, animar, mas que são ignoradas. Como reconhecer, valorizar e aceitar as contribuições delas, sem contudo, fortalecer a ideia do exibicionismo, do personalismo e da vaidade? Pensando as contribuições especializadas a serviço da caminhada coletiva. Assim como formar novas pessoas para substituir as atuais na maioria de meia idade ou idosas, quando nos próximos anos muitas em razão da idade não acompanharão mais as reuniões ou virão a falecer.
Como as comunidades enfrentam situações da falta de qualificação profissional, o desemprego, o desamparo de famílias? Como gera e administra os recursos para financiar os encontros, as reuniões, as viagens de seus participantes. O apoio para que deseja estudar e não tem condições financeiras? Para que mora em condições precárias? Para quem precisa de comida? De apoio psicológico? Para quem é violentado/a, agredido/a cotidianamente?
Nas comunidade existem pessoas surdas filhos e filhas, sobrinhos e sobrinhas, netos e netos dos participantes. As pessoas surdas são “invisíveis”, desconhecidas, esquecidas. Bem mais que idosos/as, doentes acamados/as nas casas por anos e anos. Parentes de membros das comunidades são alcoólatras, violentos com a família, dependentes de drogas, vivem no submundo do tráfico e do crime. Quais as estratégias são possíveis para acompanhar, apoiar, contribuir com essas pessoas que na maioria das vezes são desamparadas de tudo e de todos, quando a vida parece ter perdido o sentido?
As comunidades correm o risco de incorporar a ideia de “povo eleito de Deus” e dessa forma se fecharem em si mesma pensando que estão “a caminho do céu”! Mas, na vizinhança existem muitos dos mais empobrecidos dos empobrecidos! São as pessoas vivendo nas ruas, dormindo nas marquises, maltratadas, humilhadas, mortas todos os dias. Essas situações são ignoradas pelas comunidades! O que e como fazer para ir até essas pessoas para ao menos conhece-las, compreende-las e encontrar formas de apoia-las para se desejarem superar as situações em que vivem?
No mundo fora e no interior das comunidades existem pessoas com orientações sexuais diversas. São gays, lésbicas e outras formas de expressão da afetividade e sexualidade vistas equivocadamente como “pecado”, ou ignoradas, fingindo-se o desconhecimento das situações. Na maioria das vezes essas pessoas sentem essa rejeição de forma angustiante. Qual ao papel das comunidades diante dessas situações? Como superar preconceitos, discriminações e acusações? Como respeitar, apoiar e ser solidárias com essas pessoas, reconhecendo seus direitos e qualidades como ser humano?
As formas de cultuar Deus são também diversas. Jesus Cristo é a verdade para os/as cristãos/as. Todavia, existem muitas formas para celebrar a dimensão mística vida. E no geral as religiões defendem o bem-estar, a felicidade humana e paz universal. Como cultivar o ecumenismo com crenças diferentes não cristã, a exemplo das religiões afro-brasileiras com templos e espaços de cultos no interior ou na vizinhança das comunidades? Ou até onde é possível estabelecer diálogos com os irmãos evangélicos? O que une e não separa a fé, a espiritualidade, a defesa da vida humana plena?
Como as comunidades se relacionam com grupos humanos e povos com expressões socioculturais diferente como os povos ciganos, os povos indígenas, sem preconceitos, para além de uma visão folclórica, romântica e exótica de “consumidores da cultura”, das danças, dos artefatos, cocares, colares roupas coloridas? Como conhecer, respeitar e apoiar as reivindicações desses povos que ter os territórios onde habitam invadidos, são perseguidos, lideranças são assassinadas, enfrentam violências de latifundiários, da polícia, do Estado?
Para além dos modismos e propostas empresariais, as relações com o Ambiente e não “meio-ambiente”, as relações com a Natureza, o acesso, usos e domínios dos recursos naturais como a água, principalmente no Semiárido nordestino, são fundamentais para a vida humana, para a existência na Terra. Como a temática ambiental como a preservação da Caatinga, das matas nas regiões úmidas, das nascentes, da fauna de da flora, das diversas formas de poluição sejam dos rios e lagoas mortos quando aterrados ou canalizados estão sendo discutidos pelas comunidades?
No sistema capitalista a Educação é uma grande possibilidade de superar a opressão determinada aos/as empobrecidos/as. O estudar que não seja para abandonar as origens, o lugar onde nasceu e viveu, na ilusão da cidade grande onde o indivíduo será mais um explorado, morando e vivendo mal nas periferias. Uma Educação libertadora, contribuindo com ferramentas para analisar criticamente a sociedade e a política, dialogando com o mundo, conhecendo e se precavendo das as armadilhas do consumismo. Como então, as comunidades incentivar os estudos, as leituras e discussões principalmente de jovens para superar o fascínio pelas mídias sociais com informações rápidas, genéricas e superficiais?
As comunidades precisam de assessorias de pessoas para discussões e estudos de temas. Esses “especialistas” na maioria são externos. Como investir e estimular a formação de membros para atuarem na formação das comunidades. Ou seja, como ciar um programa de formar novos formadores, lideranças, e animadores para superar a dependência de assessorias externas?
Na chamada classe média, existem pessoas solidárias com a caminhada e mobilizações das comunidades. De que forma garantir alianças com essas pessoas de forma que contribuam com as comunidades, respeitando os processos, as experiências e as vivências de cada uma delas?
São perguntas, questões e desafios para pensar em possíveis respostas a curto, médio e longo prazo, mas que as comunidades tem potencialidades, criatividades e força política para enfrenta-las. Na construção de uma mundo de justiça, vida plena e com dignidade para todas as pessoas sem distinções.
*As reflexões nesse texto baseiam-se no que apresentei na “live” CEB’s: comunidades de fé e vida, onde participei com muita alegria ao lado dos companheiros Adauto Guedes e Kleber Gonzaga, como parte da série “Diálogo de política e Direitos Humanos”, realizada em 27/06/2020 pelo Santuário das Comunidades (Caruaru/PE). Agradeço e muito a oportunidade e o convite da “vizinha” Alecsandra, bem como o apoio de Almir, moradores em Riacho das Almas/PE.
[1]O Padre José Comblin nasceu na Bélgica, na Europa, onde estudou. Veio para o Brasil em 1958 e onde foi professor até 1962 sendo um dos seus alunos Frei Beto. A convite de Dom Helder Câmara veio para o Recife, onde foi professor de Teologia e acompanhava os seminaristas que morava nas comunidades em Pernambuco e na Paraíba, sempre preocupado com a situação social, em refletir a fé, a vida e os compromissos políticos dos/as cristãos. Por isso foi perseguido pela Ditadura Militar e foi expulso do Brasil em 1971. De volta ao Brasil no anos 1980 foi morar na Paraíba onde acompanhava as comunidades, e criou o Seminário Rural com estudos da “Teologia da enxada” para formar missionários populares para atuar nas comunidades no Nordeste. Nos últimos anos de vida foi morar na Diocese de Barra, na Bahia, onde faleceu em março de 2011 com 88 anos de idade. Escreveu muitos livros de Teologia que muito contribui para a formação de seminaristas, religiosos e leigos. Para saber mais sobre a experiência da “Teologia da enxada” no Seminário Rural, ver o livro Teologia da Enxada e Ditadura Militar: relações de poder e fé no Agreste pernambucano entre 1964-1985, publicado por Adauto Guedes Neto (Tacaimbó/PE) em 2014.
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